quinta-feira, 5 de março de 2015

Crianças do 1º ciclo "trabalham" mais do que os adultos


Muitas crianças portuguesas entre os seis e os dez anos trabalham como alunas tanto ou mais do que os adultos, com oito horas diárias na escola a que muitas vezes acrescem trabalhos de casa "repetitivos e inúteis", defendem especialistas.

"A vida das crianças a partir dos seis anos não pode funcionar só a partir da escola. A escola é muito importante, mas a educação informal e os momentos de lazer e o brincar são fundamentais", argumenta Maria José Araújo, investigadora da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto.
Opinião idêntica revela o pediatra Mário Cordeiro, para quem as crianças trabalham mais do que os adultos: "Qualquer sindicato das crianças, se existisse, nunca permitiria tamanha carga horária".
Para Maria José Araújo, os TPC, a existirem, devem ser feitos na escola, eventualmente no apoio ao estudo e nada mais, até porque "representam muito em termos de tempo que ocupam, mas muito pouco em termos de estímulos cognitivos".

"A cultura escolar sobrepõe-se à cultura lúdica", refere Maria José Araújo, que lamenta que o tempo livre das crianças seja invadido pela escola, não deixando que a criança possa descansar e escolher o que fazer.

Vendo o tempo médio de trabalho de um adulto, entre 37,5 a 40 horas semanais, percebe-se que muitas crianças trabalham no seu ofício de alunas tanto como um trabalhador adulto. Contudo, enquanto o trabalho profissional dos adultos é seguido de descanso para a maioria das pessoas, o trabalho escolar é cada vez mais desenvolvido dentro e fora da sala de aula, nota a investigadora, em declarações à agência Lusa.

O tempo para brincar, descansar e preguiçar é, segundo os especialistas, subvalorizado. Trata-se sobretudo da forma como as atividades são estruturadas, já que mesmo as atividades de enriquecimento curricular são pensadas em termos de escolarização.

"O ensino formal é muito importante e devemos estimular as crianças para isso. Mas depois de cinco horas de atividade letiva, é preciso descansar e brincar. As outras atividades que as crianças realizem devem ter uma metodologia lúdica", defende.

Atualmente, a escola e a família parecem ter esquecido que a brincar se "aprende muito": "as crianças não brincam para aprender, aprendem porque brincam. Brincar é viver, para as crianças. É necessário respeitar a cultura lúdica e as culturas da infância".

Repetir em casa o que se fez na escola, prolongando o tempo de trabalho escolar, é um dos erros que se tem vulgarizado, defende.

"Os TPC [trabalhos para casa] são muitas vezes repetitivos e inúteis. Meninos de seis e sete anos andarem a repetir letras e fichas, com o argumento de que eles gostam e precisam, devia ser proibido, como acontece já nalguns países", sustenta Maria José Araújo.

Contudo, a investigadora diz que é necessário distinguir entre estudar e fazer TPC: "Estudar é importantíssimo e deve ser ensinado e incentivado. Deve ser mostrado isso às crianças. Mas estudar tem de ter a adesão voluntária de quem o faz. Já os TPC repetitivos podem ajudar a mecanizar, mas afastam a criança do sentido e do valor do conhecimento".

"Na verdade, se os TPC, tal como os conhecemos, ajudassem as crianças a ter sucesso escolar já se teria notado", indica, sugerindo que se deve antes ajudar as crianças a compreender o significado do conhecimento e das diferentes formas de aprendizagem. "Saber não é só repetir e há muitos educadores que apostam mais nesta versão", defende.

Também para o pediatra Mário Cordeiro, a escola, onde os meninos permanecem tanto tempo, tem a obrigação de ensinar "sem invadir o espaço-casa, onde as crianças devem estar sem pressões".

"Os TPC diários, na versão 'mais do mesmo', são uma invasão da privacidade, na pior hora possível para a família e quando o aluno não tem capacidade de resposta, originando stress familiar e pessoal. Deviam ser abolidos", defende Mário Cordeiro.

Por Paula Mourato, in Diário de Notícias 5/3/2015

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